26 fevereiro 2009

As Cidades e os Olhos

CODEX SERAPHINIANUS, Luigi Serafini (Seraphianus), 1981.

…Chegados a Filias comprazemo-nos a observar quantas pontes diferentes umas das outras atravessam os canais: pontes em arco, cobertas, sobre pilares, de barcas, suspensas, com os parapeitos perfurados; quantas variedades de janelas se vêem sobre as ruas: geminadas, mouriscas, lanceoladas, em ogiva, encimadas por lunetas ou por florões; quantas espécies de pavimentos cobrem o solo: de mosaicos, de lajes, de saibro, de azulejos brancos e azuis. Em cada um dos seus pontos, a cidade surpreende a vista: um cesto de alcaparras a sair da muralha da fortaleza, as estátuas de três rainhas sobre um pedestal, uma cúpula em cebola com três cebolinhas enfiadas na agulha do pináculo. "Bem-aventurado quem tem todos os dias Filias sob os olhos e nunca deixa de ver as coisas que contém", exclamamos com a tristeza de ter de abandonar a cidade depois de havê-la só aflorado com o olhar.

Mas acontece-nos ficarmos em Filias e passarmos lá o resto dos nossos dias. Em breve a cidade empalidece aos nossos olhos, cancelam-se os florões, as estátuas sobre os pedestais, as cúpulas. Tal como todos os habitantes de Filias, seguimos linhas em ziguezague de uma rua para outra, distinguimos zonas de sol e zonas de sombra, aqui uma porta, ali uma escada, um banco onde podemos pousar o cesto, uma cunha onde o pé tropeça se não dermos por ela. Todo o resto da cidade é invisível. Filias é um espaço em que se traçam percursos entre pontos suspensos no vácuo, o caminho mais curto para chegar à loja daquele mercador evitando o portal daquele credor. Os nossos passos percorrem não o que se encontra fora (do alcance) dos olhos mas sim dentro, sepultado e apagado: se entre dois pórticos um continuar a parecer-nos mais alegre é porque é aquele por onde passava há trinta anos uma rapariga de largas mangas bordadas, ou é só porque recebe a luz a uma certa hora como aquele pórtico, que já não nos lembramos onde ficava.
Milhões de olhos erguem-se para as janelas pontes alcaparras e é como se percorressem uma página em branco. Muitas são as cidades como Filias que se subtraem aos olhares se não as apanharmos de surpresa.
Italo Calvino, As Cidades Invisíveis

Sexto dedo

12 fevereiro 2009

Yukoku


Yukio Mishima, O Patriotismo - Ritos de Amor e Morte (a gerência pede desculpa pela interrupção)

"A 28 de Fevereiro de 1936, o terceiro dia depois do incidente de 26 de Fevereiro, o tenente Shunji Takeyama, do Batalhão de Transportes, profundamente perturbado ao saber que os seus colegas mais próximos eram coniventes com os amotinados, e indignado ante a iminente perspectiva do ataque das tropas imperiais, tomou a sua espada de oficial e, cerimoniosamente, esventrou as suas entranhas no quarto de oito tatamis da sua residência privada, a Residência Yotsuya, na sexta rua de Aoba-Cho, no Distrito de Iotsuya. Seguiu-se-lhe Reiko, a sua mulher, que se matou apunhalando-se".

Yukio Mishima, O Patriotismo - Ritos de Amor e Morte

03 fevereiro 2009

02 fevereiro 2009

Two Heads

"Two Heads", Helena Nogueira da Silva

Duas cabeças na carpete, sem dúvida acrílica, do escritório do general, colocadas uma ao lado da outra, como quilhas, quase roçando entre si. Duas cabeças, bolas inertes, dois cérebros que o sangue já não irriga, dois ordenadores interrompidos na sua tarefa, que já não filtram nem descodificam o perpétuo fluxo das imagens, de impressões, estímulos e respostas que aos milhões nos atravessam todos os dias, formando no seu conjunto aquilo a que chamamos a vida do espírito e mesmo a dos sentidos e motivando e dirigindo os movimentos do resto do corpo. Duas cabeças decapitadas, partindo para um mundo diferente onde vigoram outras leis e que, ao serem contempladas, produzem mais estupefacção do que horror. Os juízos de valor, morais, políticos, ou estéticos, ficam, na sua presença, momentaneamente suspensos. A noção que se impõe é mais desconcertante e simples: entre as miríades de coisas que existem e que existiram, estas duas cabeças existiram; existem. O que enche agora esses olhos que já não vêem, não é a bandeira desfraldada dos protestos políticos, nem nenhuma outra imagem intelectual ou carnal, nem sequer o vazio que Honda contemplara e que parece agora um conceito ou um símbolo, apesar de tudo demasiado humano. Dois objectos, restos quase inorgânicos de estruturas destruídas e que depois de passarem pelo fogo serão apenas minerais e cinzas. Não são, sequer temas possíveis de meditação, pois faltam-nos os dados para podermos meditar sobre eles.
Dois destroços arrastados pelo Rio da Acção, que uma vaga imensa deixou por um instante a seco sobre o areal, antes de os voltar a levar consigo.
Marguerite Yourcenar, Mishima ou a Visão do Vazio