"homem do lixo"
Nuno Ramalho e Renato Ferrão
Caixote do lixo no lado esquerdo do canteiro central à entrada do jardim do palácio de cristal, Instalação
Em tempos, um homem mudo e velho vendia jornais na entrada do palácio. Dizia-se que perdera a fala de um momento para o outro e o próprio sempre se escusou a dizer, por escrito ou outro meio, o que lhe sucedera. Era eu ainda novo quando um antigo guarda do parque me satisfez a curiosidade acerca daquela figura triste que à entrada me chamava a atenção.
O caso dera-se no principio do Verão, uma tarde após o almoço num dos bancos do jardim. Um estudante frequentador da biblioteca adormeceu enquanto lia os classificados de um jornal. Ao acordar com as folhas revolvidas no rosto teve a sensação que algumas horas haviam passado. Certo que perdera o dia e sentindo-se incómodo na situação, levantou-se entorpecido do corpo e olhando para a folha impressa que deslizava do colo para os pés. Intuitivo, agachou-se para a recuperar e com espanto, reparou que na secção de necrologia, entre todos os rostos se apresentava também o seu. Passou incrédulo os olhos pela habitual condolência e leu o seu nome. Fixou confuso durante algum tempo o inequívoco retrato. Atordoado com a singularidade dos acontecimentos, resolveu esquecer para assim se conservar. Decidiu abalar e enfiou rapidamente o jornal num cesto para papéis quando pela abertura, uma voz que não lhe soou de todo estranha o devolveu á inquietação: “ser é ser retratado” ouviu. Com as pernas a tremer verificou que não conseguia largar o jornal ou recolher o braço que agora sentia rígido, o esforço do movimento parecia envolver ainda mais para dentro, como se qualquer tentativa fosse um passo para ser engolido. Sentindo-se refém na situação inquiriu o cesto nas suas intenções, ao que este retorquiu com a estranha afirmação proferida momentos antes, para de seguida propor que a remoção da sua imagem na necrologia lhe custaria a voz. O estudante não reflectiu ante a estranha imobilidade que lhe magoava o braço, cedendo á proposta viu-se livre com as folhas de jornal na mão. Procurando ansioso o seu retrato, foi com alivio que não se identificou com qualquer daquelas fotografias.
Feliz com o desfecho do bizarro episódio, caminhou tranquilizando-se até perceber que não conseguira vociferar a satisfação que o invadira instantes antes e foi nessa altura que ouviu por trás de si, do interior do cesto de papéis, a sua própria voz: “ser é ser-se ouvido”.
Renato Ferrão (texto e voz)
34 comentários:
Proposta de reflexão sobre a prática do espaço público. ..não ouvi falar desse projecto.
J.
conseguiste ouvir o som nesse trabalho?
teve bastantes problemas técnicos...
pegas num assunto que me é querido.
i n s t a l a ç o e s
falei com o paulo mendes ontem de instalação, de maes perdidas, jornais, revistas... tudo material muito bem instalado.
mark dion ou a pilha de lixo ao cimo de miguel bombarda....
já nao as distingo.
parece que o oscar nao gostou da ida do macacal olimpico que se foi INSTALAR lá para os lados de guimaraes. pois... guimaraes. sempre há um ivo que espera por si.
ainda nao falei com ele acerca disto.
neste caso...
gostei muito disto. as meninas com as merendas tambem...
intalação...
-
mudar o sentido ao lugar...
...ao objecto existente
...ao objecto adicionado
?
tinha som?
instalação: muito se vê aqui.
Nós e o espaço...projecto engraçado.
Inês
...já vi o link no título "em torno"
(não tinha percebido...)
:)
interessante...
"entorna",
também,
... a mente ...
Também andei aí. Fiz um pic.nic na relva!
nah, isto já é muito à frente para mim!
confesso que tenho sérias dificuldades em compreender certas formas de "arte"!muito provavelmente deitava o papel do gelado lá para dentro!sorry!
Relações com o local. Criações.
Z.C
Re-criações, re-visitações, re-novações.
Há caixotes do lixo e caixotes do lixo!
Sempre de olho em tudo! :D
Voltei depois de andar à procura.
"...processo de análise e de relação de cada artista, relativamente ao espaço e ao contexto por eles escolhido como área de intervenção.
O projecto “Em torno” foi concebido e coordenado pelo artista plástico André Guedes a convite do NEC, no âmbito da XI edição dos Quadros de Dança."
O André Guedes era um da selecção nacional que fizeste, já fui confirmar.
J.
Olá Mer! não tem nada a ver com o post, mas o que aconteceu com a Ben e a Jean???
Se calhar partiram!Se for o caso, fico triste!
E eu tenho de ir ver isso, então. Cada vez me convenço mais de que vivo num casulo. Quanto tempo vive uma borboleta?
O que é que ouvias?
Inês
Confesso que não me soube desta iniciativa... mas é algo me interessa, sobretudo pela ginástica mental que suscita...acorda-nos, por vezes.
Um xi
Meu doce M.
perdão pela confusão...parecias mesmo alguém que me conhece profundamente.Foi bonito até...
:)
Muito obrigada...um abraço.
Inês
Acabei de acrescentar o texto.
as memorias antigas que metem retratos e homens que falam pouco na porta dos jardins.
lembro-me do homem do caixote que tirava retratos junto a estatua do antonio nobre na cordoaria.
junto a ele uma arvore com um olho onde ele todas as manhas colava uma especie da pasta de batata e pao. Era o alimento para o pardal com quem falava. um dia alguem lhe matou a ave e o homem nunca mais tirou retratos.
por incrivel que pareça...
confesso que o que mais gostei acima de tudo foi do cartaz.........
Um novo sentido com o texto...
antes disso o texto era livre.
Z.C.
Boa semana
agora tudo ganha uma nova dimensão; deixou de ser um mero caixote de lixo. Ser é ser compreeendido.
(Se clicares com jeitinho, consegues ouvir sem saires- aponta ao meio!)
Fiquei a pensar o que teria ouvido.
Agora já sei.
J.
já vi o texto
Neste post percebi,pelo menos, uma coisa (já não é mau!!!) "não devo nunca adormecer enquanto leio os classificados de um jornal"... e se, por acaso, adormecer, o melhor é sair sem nunca tentar meter o mesmo jornal num caixote de lixo "inteligente"...
:)))))))
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sempre pensei que o homem do lixo citasse camus...
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toda a infelicidade dos homens provém da esperança.
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[ tal como o(s) pandora c., tb gosto muito do cartaz...]
(com o texto tudo soa diferente...)
ontem fizemos um cd para instalações... automático...
nem muitos que por cá vivem o conhecem. gabo-me de ter o privilegio e indecência doce de o ir conhecendo aos poucos. tu tambem.
os texto do book nao sao grande pistola mas... tem lá um de um conhecido "gajo" que morou num igualmente bem conhecido bairro. partilhou algumas tretas com o ruben a. que morava mais a prima e a velha maquina umas centenas de metros acima na apaixonante quinta ...
bom... se for caso disso diz e eu mando.
vocês lêem tudo e não ouvem nada.
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