Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.
Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
— a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as casas deitadas nas noites
e as luzes e as trevas em volta da mesa
e a força sustida das coisas
e a redonda e livre harmonia do mundo.
- Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
— E o poema faz-se contra a carne e o tempo.
14 comentários:
Não conhecia e gostei imenso deste poema.
Obrigada.
Herberto Helder, um "must"!...
concordo com o boneco amarelo aí de cima
muito boa escolha!
sem dúvida, a ler, em assombro. acrescento:
'Alguém diz, tocando-me com o seu livre delírio:
canta até te mudares em azul,ou estrela electrocutada, ou em homem nocturno.', H.Helder
muito bom o poema! tenho que ler HH
conheces os poemas visuais dele?
ele publicou nos anos 60 com o antonio aragão 2 numeros de um magazine dedicado á po.ex
se nao conheceres avisa que eu mando... UMA COPIA
Muito bonito!
Holeart:
Eu tb gostava de ter uma cópia... Obrigada. :)
casanovaines@yahoo.com
O HH é grande! Grande!
As casas respiram
As casas respiram. Podemos ouvi-las durante a noite. Têm um movimento soturno e imperceptível sob a secura da noite. Breves ruídos que despistam, o estalar das madeiras, as horas num relógio escondido. Mas não se trata disso. É a respiração das casas que nos suportam, a nós homens, mas possuem uma vida independente, muito densa. Acendi a luz e pus-me a ler. Um capítulo sobre as estátuas gigantes da Ilha da Páscoa que têm uma pedra vermelha sobre a cabeça. Estas pedras vermelhas parecem significar a cor amarela dos cabelos... Merda. Vou fumar para a janela. Passo a noite assim. Até que a madrugada começa a vir do rio. Sobe devagar pelas coisas como uma grande língua fria. Aparecem as casas, o miradoiro, a torre. Vejo então, muito vivo na palidez da madrugada, o bloco junto à igreja, com as suas escadas incompletas que se interrompem uns três metros abaixo da soleira da porta descolorida, entre os umbrais suspensos no espaço. Que é isto? A escada fica a meio percurso entre uma espécie de pátio, com montículos de arbustos rasteiros, e a porta que não dá entrada para sítio nenhum. E ei-lo, a esse último degrau, insólito, parado no ar: pura alucinação. Não era possível chegar à porta trepando pelas escadas. Mas se lá chegássemos, se nela batessemos um dia inteiro, ninguém a abriria. Ou se a forçassemos, ficaríamos sob os velhos umbrais de pedra, com a vista para o rio, as casas, a cidade. As mesmas coisas que se vêem daqui, da janela. As mesmas que se veriam de qualquer parte. E o mais perturbante é que nem à porta chegaríamos, pois os degraus ficam muito abaixo da soleira. E, reparo, nem às escadas é possível ter acesso. Não se vê como alcançar o pátio de onde arrancam. Só o vento cego traz para ali a poeira invisível, ao longo dos meses, ano após ano, e nascem então esses arbustos inúteis. Os arbustos que parecem sofrer como um pensamento, sob a luz feroz, entre as cruéis linhas de pedra. Não sei nada. Atrevo-me a acender um novo cigarro. E o terror entra silenciosamente na minha vida.
in Os Passos em Volta - Escadas e Metafísica, Herberto Helder
Amei este poema.. Fiquei curiosa para ler mais.
A sensibilidade está definitivamente na ponta dos dedos...
foi o meu professor de português do 12º ano que me recomendou Herberto Helder. Perguntava que andávamos a ler. Respondi Rimbaud. Recomendou-me então o 'Poesia Toda' Herberto Helder (que conhecia muito ao de leve), disse que se eu gostava de Rimbaud iria gostar do Herberto. Curiosamente nesse mesmo dia recebi uma newsletter da assírio&alvim dando a novidade de 'O poema contínuo', a 'actualização' do 'poesia toda'. comprei, tenho vindo a ler, e é mesmo mesmo bom.
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e o poema faz-se contra a carne e o tempo.
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definitivamente
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sim.
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o tipo é assombroso!
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