«Como me sinto inquieta», pensou Clementina, debruçada à janela.
O jardim doirava-se ao sol.
Não sei onde eles estão, o Noël, o Joël ou o Citroën. Podem, entretanto, ter caído ao poço, ou comido alguns frutos envenenados, ou apanhado com alguma seta num olho, se algum outro miúdo anda a brincar no meio da estrada com um arco, ou podem ter sido contaminados pela tuberculose, se algum bacilo de Koch se meteu de permeio, ou terem perdido os sentidos, se cheiraram alguma flor de perfume muito intenso, ou terem sido picados por um escorpião trazido pelo avô de algum garoto da aldeia, algum célebre explorador que tenha chegado há pouco da terra dos escorpiões, ou terem caído de uma árvore abaixo, ou corrido, depressa demais e partido uma perna, ou brincado com a água e afogado, ou descido a falésia e estampado e quebrado a espinha, ou arranhado nalgum arame ferrugento e apanhado o tétano; foram até ao fundo do jardim e viraram uma pedra, debaixo da qual havia uma pequena larva amarela que vai desenvolver-se num abrir e fechar de olhos, e voar em direcção à aldeia, e introduzir-se no estábulo de um touro bravo e picá-lo no focinho; o touro sai do estábulo, deita tudo abaixo, e ei-lo que mete pernas ao caminho, em direcção a esta casa, vem de lá como doido, deixa tufos de pêlo negro em cada curva, presos às moitas de uva-espim; e, mesmo em frente de casa, lança-se de cabeça baixa contra uma pesada carroça puxada por um cavalicoque meio cego. Com o choque, a carroça desmantela-se e um pedaço de metal é projectado no ar a uma altura incrível; possivelmente um parafuso, uma cavilha, uma porca, um prego,
um ferro do varal, um gancho de ligação, um rebite das rodas, que foram carpinteiradas e depois quebradas, e reparadas mediante cinchos de freixo talhados à mão, e esse pedaço de ferro sobe, silvando, em direcção ao azul do céu. Passa por cima do gradeamento do jardim, e oh meu Deus, vai cair, vai cair e, na queda, aflora a asa de uma formiga voadora, arrancando-lha, e a formiga, mal dirigida, perdida a estabilidade, vagueia por sobre as árvores como uma formiga que já não presta, e tomba, de repente, sobre a relva onde, Deus meu, está o Joël, o Noël e o Citroën, a formiga cai em cima da bochecha do Citroën e, deparando, possivelmente, com uns restos de doce, pica-o...
— Citroën! Onde estás tu?
Clementina precipitara-se para fora do quarto e gritava, fora de si, enquanto descia as escadas a galope. No vestíbulo, esbarrou com a criada.
—Onde ó que eles estão? Onde estão os meus filhos?
—Estão a dormir — respondeu a outra, com ar de espanto. — É a hora da sesta.
Pois é, ainda não foi desta; mas era perfeitamente plausível. Voltou para o quarto. Com o coração aos pulos. Não há dúvida de que é um perigo deixá-los ir sozinhos para o jardim.
Tradução de Luiza Neto Jorge, Editorial Estampa
Boris Vian, escritor, compositor, trompetista, cronista de jazz, cenógrafo, actor de cinema.
Je serai content quant on dira / au téléphone / ... / V comme Vian... // J’ai de la veine que mon nom ne commence pas par un Q / Parce que Q comme Vian, ça me vexerait
17 comentários:
Este escritor é o meu heroi!!! Tenho uma cambada de livros dele para por no meu bolg!! As Formigas dele é excelente!!!
olha o gajo. claro... muito interessante. uma grande proposta e a ediçao é de lux.
se tiveres tempo amanha...
...tradital.blogspot.com
vais conhecer a minha cozinha em
construçao...
Grande V (ian)
Z.C.
receita para tempo?
fazer de conta todos os dias. a doce irresponsabilidade. sedeus me condenou á penitencia.... ele que amargue.
vai estando atendo ao novo lugar.
boa escolha em termos de autor, livro e colecção. perfeito!
Este livro não conheço. Mas pelo post e pelos comentários já percebi que tenho que resolver isso.
Não conhecia, mas já deu para rir, olha que há assim pessoas muito pessimista, ai há há!
li alguns contos dele, um bom autor.
foda-se... é um dos meus livros preferidos (top 10). e um dos escritores preferidos tb (top 5). genial a forma como se fala de liberdade neste livro, feito de cenários pesados. grande livro. boa.
Boas merdinhas se fazem por aqui.
EH EH EH
Uma escolha surpreendente.
Gosto muito. Lembro-me que quando o meu pai decidiu fazer uma limpeza às prateleiras dele, deu a colecção inteira do Vian e do Burroughs à minha irmã e a do Kerouac e do Ginsberg a mim.
Estou farto de ouvir falar do Boris Vian, mas nunca li nenhum livro, este já passou pelas minhas mãos...se calhar está na hora???
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o boris vian é louquíssimo!
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adoro-o.
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há alguma história de amor mais pungente do que "a espuma dos dias"?
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Gosto tanto deste livro... vou já resgatá-lo da prateleira. Obrigada pela excelente sugestão.
Um convite a um espectáculo que pretende reunir o que há de mais autêntico no Boris Vian.
http://paginas.fe.up.pt/~engenhar/
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